VIAGEM A UM MUNDO DIFERENTE
Lá estava Rogério sentado à mesa sob o guarda-sol a apreciar o pessoal brincando na praia. Tudo é divino maravilhoso pensava ele ao lembrar da música com esse nome. O multicolorido do entardecer dourando a água, bronzeando ainda mais as figuras movimentando-se sob o sol alaranjado, a imagem do Cristo de braços abertos e o Corcovado davam o aval perfeito ao seu pensamento. Tudo é divino maravilhoso, repetia ele, murmurando baixo.
Aquele copo de suco de melancia em sua mão,era algo delirante. Pensava ele: melancia é mesmo surpreendente, enorme, saborosa; uma única fruta serve para muita gente. Além do mais, tem manga, banana, jabuticaba. E assim continuou a pensar e a lembrar da incrível variedade de frutas brasileiras o que o levou a fazer um batuquesinho na mesa acompanhando a Aquarela do Brasil assoviada.
Qualquer um poderia estranhar este deslumbramento relacionado a tudo a sua volta. Estava feliz e de algum tempo para cá já vinha encantando-se com cada detalhe da vida no planeta, mesmo sendo um simples inseto ou uma minúscula flor inexpressiva que ninguém olhava.
Todo o dia não perdia um por do sol sequer, não deixava passar oportunidade de conversar e escutar com atenção a qualquer pessoa. Estava feliz a redescobrir o mundo com mais alegria do que uma criança com a novidade.
Tinha motivos de sobra para sentir-se alegre. Pois passara por situações, as quais, nunca ninguém vivera na Terra. Rogério era um desses sujeitos incomodado com tudo na vida. Ora era a baixaria na TV, ora as crianças a gritar, resmungava com a falta de profissionalismo, contra os políticos corruptos, a baixa qualidade das músicas, a falta de assunto de todo mundo, o consumismo. São acontecimentos da nossa contemporaneidade com certeza. Mas, para nosso protagonista seria a bancarrota de toda a humanidade. Todavia, ficava bem difícil aceitar a existência neste orbe.
Apesar de ser um crítico extremado, era honesto, justo, bondoso, um estudioso constante das coisas relacionadas à vida. Era sim, um esmiuçador, curioso e não perdia a oportunidade de correr atrás de tudo o que parecia esclarecer um pouco mais sobre os mistérios da existência humana e do cosmo.
Certa noite, quando voltava do trabalho, ficou estupefato com uma bola branca iluminada volitando sobre o jardim de sua casa. Imaginou logo que poderia ser o Boitatá. Portanto, não perderia a oportunidade de conhecer e desvendar mais esse mistério. Em certa altura da perseguição do estranho objeto sentiu-se como um bêbado impossibilitado de controlar seus passos e desfaleceu bem ali no gramado.
Acordou depois de um tempo ao qual não podia precisar. Estava ao seu lado um estranho que irrompeu a dizer-lhe:
--Companheiro! Durante anos cogitastes estar noutro planeta, olhavas o firmamento durante a noite imaginando como seria bom estar num mundo onde não houvesse atribulações como as da tua morada. Desejavas outro alimento, reclamavas de tudo, não suportavas os netos. Agora teus sonhos, realizar-se-ão, tu poderás viver em Coatzquil.
Um calafrio incontrolável, acompanhado de arrepios tomara conta do corpo de Rogério. Está certo que era um curioso e queria conhecer algo novo, mas aquilo era além do suportável para emoções humanas. Quem seria esse ser conhecedor da sua intimidade. Como poderia tal fato acontecer. Será que já me observavam há muito tempo?
Deduziu Rogério que mesmo tentando controlar seu pensamento para não emitir idéias errôneas, nada passaria desapercebido. Fatalmente conheceriam seus recônditos mais inconfessáveis.
Aquelas magníficas e grandes criaturas, com roupa brilhante não demonstravam esforço nenhum para causar empatia. Seus grandes olhos negros eram penetrantes e magnéticos parecendo olhar além da personalidade nas profundezas da alma. Profundezas estas, cuja própria pessoa não conseguiria conhecer de si mesma. Portanto, era natural um receio muito grande da parte de Rogério; receio certamente notado por tais entes.
Quando o terráqueo estava prestes a ter convulsão um daqueles indivíduos traz-lhe um alimento em recipiente transparente tratava-se de uma substância rosa parecida com um mousse por baixo, em seguida vinha uma camada vermelho transparente amarelando até chegar na última camada com aparência de geléia de mocotó. Era saborosíssima, saciava a qualquer fome, repunha imediatamente as energias do corpo de forma a restabelecer até o humor de Rogério e o mais impressionante era o fato de ser a comida não existente na Terra a qual nossa personagem imaginava existir ou tinha lembranças em seus desejos.
Um zunido aconteceu ao abrir uma imagem de parede inteira mostrando a aproximação de Coatzquil. Uma cidade sombria, com variações de chumbo e negro, cujos edifícios se projetavam as alturas num céu cinzento e esfumaçado.
Desta vez, no desembarque foi preciso colocar uma espécie de aparelho em torno do pescoço de Rogério, aparelho, o qual traduziria e faria traduzir toda conversa com os, assim chamados, tutelados - os naturais do planeta. Estes, por sua vez, usavam macacões chumbo; eram magros, baixos e pálidos, mais para acinzentados do que para salmon. Foram orientados pelos mentores (descidos da nave) a levarem o novo morador a uma hospedagem até segunda ordem.
No caminho, só pequenos veículos em trilhos, telas para todos os lados, transmitindo palavras de ordem, nenhuma figura, nada de cores, nenhuma árvore, planta ou mesmo brisa. Não havia som de música ou pássaros, só um enorme burburinho de infinitas máquinas trabalhando. As janelas eram todas sem vidro mas resguardadas com ferros ou malhas.
Os tutelados nada falavam, só inflamavam mais e mais a repugnância despertada no nosso principal personagem.
Na hospedaria alguns abrigados se refestelavam em frente a uma grande tela transmitindo inexplicáveis e contínuas situações vergonhosas onde se expunha os mais íntimos sentimentos
e defeitos de um ser que nem se podia chamar exatamente de humano.
Exausto, Rogério solicitara um quarto ao hospedeiro, mas antes o tutelado, apresentando um sorriso debochado ofereceu-lhe um prato de comida, cuja pasta escura apenas esboçava uma ligeira cor verde. Alimento este, de afugentar o apetite de qualquer esfomeado.
O quarto mais parecia um submarino apertado lotado de treliches metálicas com janelinhas gradeadas com malhas que davam para a rua a vários metros abaixo. Seria este ínfimo espaço de apenas uma cama a morada onde teria de viver todas as suas particularidades neste planeta? Matutava Rogério.
Na cama, as aterradoras constatações conspiravam contra o sono. Nenhum gatinho para afagar, um cachorro alegre a abanar o rabo para gente. Faltava o azul do céu, um Sol para marcar o tempo iluminando a vida. Quem sabe este povo sem expressão nenhuma para despertar sentimentos, não conheça música, teatro, artes, flora, fauna, culinária? Talvez cores!
Por que tanta diferença entre os mentores e os tutelados? Seriam os mentores alienígenas a escravizar este mundo de almas vazias para extrair deste lugar elementos necessários para sua subsistência? Como se rebelar então se eles saberiam de antemão o desejo de qualquer um? Ai meu Deus! Saberiam até o que penso agora!
Não tem escapatória! Estas palavras se repetiam continuadamente na mente de Rogério até descambar em sono profundo.
Ao amanhecer, os mentores ordenaram que lhe servissem um alimento especial, já que o terráqueo recusaria a pasta servida costumeiramente no albergue. Contudo, Rogério deveria se apresentar no grande espetáculo dos habitantes de Coatzquil. Ofereceram-lhe uma roupa limpa cheia de apetrechos brilhantes nada agradáveis a ele. Porém, tudo era conduzido maquinalmente, sem nenhuma explicação. Com a recomendação de não perder, depuseram sobre suas mãos um objeto parecido com um cetro de vidro com luz pulsante e o colocaram num veículo de dois lugares que trafegava sobre os trilhos já vistos anteriormente.
O longo caminho só confirmava o que constatara na chegada, absolutamente nenhuma criatividade no percurso, nem ao menos vento, só as gigantescas telas colocadas em seqüência de forma a nunca sumir da vista em qualquer lugar.
Nas telas, enquanto Rogério refletia sobre esta grande mídia ininterrupta ditando os usos e costumes da região, iniciava o grande show no qual um tutelado sempre fazendo chacota apresentava convidados - todos eles com um cetro idêntico ao dele nas mãos. No programa eram expostos os defeitos de caráter, de cada um. A cada deformidade a platéia gritava. Alguns convidados faziam palhaçadas, outros choravam copiosamente fazendo os espectadores delirarem ainda mais – inclusive nas ruas. Era, como se estivesse acontecendo uma grande copa do mundo. Quem ganharia este campeonato de puro escárnio?
Rogério, terrificado, percebia agora seu destino. Afundando-se no assento do veículo conjeturava que aquele era seguramente um planeta subjugado – não com o uso de armas, mas por causa da nulidade de seus habitantes. Ou seja, eram prisioneiros por seus próprios defeitos. Seria a falta de solidariedade, respeito, dignidade dessa gente a levá-los à escravidão ou, a servidão de longo tempo os fizeram perder totalmente sua comiseração? Indagava interiormente Rogério.
O viajante ao lado aproveitando-se do pavor de Rogério, mesmo porque nosso personagem murmurava alto sobre seu desconhecimento das regras daquela civilização, sugeriu a ele que quebrasse seu cetro pois sem o referido instrumento não participaria do espetáculo. Sem pestanejar, carregado de raiva, arrebentou o objeto contra a lateral do carro. Luzes maiores e um estouro se desprendeu do cetro ao quebrar-se. O tutelado, ao lado, não continha a risada de deboche. Imediatamente a cena tomara conta dos telões da cidade. Rogério, portanto, ficou sendo a estrela principal do grande espetáculo no momento.
As câmaras o acompanhavam até a chegada na grande arena onde os convidados eram oprimidos. O apresentador excitava a platéia anunciando a maior zombaria dos últimos tempos.
--Teremos aqui este estrangeiro roliço e inchado que solta baforadas de fumaça pelas ventas. Anunciava o mestre de cerimônias referindo-se à gordura e o hábito de fumar de Rogério.
Ele é maior do que nós, mas qual seriam seus segredos mais íntimos? Continuava o locutor.
Tremor incontrolável apoderava-se do corpo de Rogério enquanto se esforçava para banir de si qualquer emoção.
De repente, numa explosão de ódio e coragem bradou em público o estrangeiro:
--AHHHHH!...
Vocês não sabem o significado de liberdade?
Liberdade é a consciência de estar livre, de não ter mandante, de fazer só o desejado, de dormir e levantar quando tiver vontade.
Isso é liberdade! Eu venho de um planeta azul, muito lindo, onde os seres como eu são livres quando pretendem.
Azul! Vocês nem avaliam a cor azul. Aqui tudo é mortificante, sem cor, sem alegria.
Escravidão! Fatalmente desconhecem esta palavra também. Escravidão é a situação na qual vocês vivem, como prisioneiros, obrigados a fazer tudo o que os mentores exigem. São cativos de sua própria ignorância.
Enquanto ele falava o alvoroço tomava conta dos ouvintes. O apresentador gritava:
--Vai para o trono ou não vai?
Merece a coroa ou não?
--Está certo! Está certo! Sentimento não se ensina só com discurso. Minhas palavras serão sempre vãs para analfabetos de emoções. Respondia Rogério sem importar-se mais com a ciência dos mentores.
A balbúrdia tomara conta da cidade, enquanto o filho de Gaia deduzia que só um ser Crístico poderia ensinar esse povo sem esperanças e mesmo assim, demorariam milênios para assimilar a orientação do Mestre.
Ao lembrar do mar, das aves, do por do Sol nosso aventureiro amealhava forças para agir. Afinal era ele mistura de muitas raças, o próprio sal da terra, um homem livre que nunca deporia suas armas, os seus argumentos libertários, a sua feliz anarquia. Portanto, altivo, simplesmente retirou-se da arena e caminhou pela cidade dono e senhor de si mesmo.
Muita gente o seguia esperando um desfecho surpreendente para o show do dia. Mas, a consciência de sua humanidade terrestre lhe conferia tal magnetismo a ponto de fazer calar a multidão a aumentar a sua volta. Os telões de todos os lugares mostravam o espetáculo de um homem capaz de quebrar todas as regras ao realizar sua própria vontade.
A lembrança dos amados deixados na Terra entristecia nosso herói que não abaixava a cabeça e nem mostrava medo. Estava decidido, a morte seria o final de sua peregrinação. Além de livrá-lo do martírio da servidão, tornar-se-ia o precursor de alguma pequena conscientização de liberdade naquela gente sem princípios.
Entrou num edifício, sem importa-se com os presentes subiu as escadas cada vez a passos mais largos e decididos, os andares se sucediam apresentando sempre as mesmas grades nas janelas até chegar ao último, um terraço onde havia o parapeito. De pé, em cima da mureta, Rogério olhava a multidão lá embaixo. Os telões já o mostravam novamente nas alturas. O povo talvez até tivesse alguma piedade ao vê-lo precipitar-se.
Na aflição da queda ouvia seu neto:
--Vovô! Vovô! Olha o desenho que fiz para você. De repente um grande susto acelerava seu coração, uma chacoalhada seguida de um ensurdecedor estrondo.
--BUUMMMMM!
--Chuva! É chuva! Bradava continuamente Rogério não cabendo de contentamento ao sentir a água caindo no seu rosto. Abraçando seu neto repetia:
--O Boitatá é um anjo! O Boitatá mostrou-me que viver aqui na Terra usufruindo este grande presente do Criador é tudo do que precisamos.
--Ah vovô! Todo mundo te procurando e o Senhor aqui deitado na grama. Eim!
--“Água que nasce na fonte
Serena do mundo
E que abre um
Profundo grotão
Água que faz inocente
Riacho e deságua
Na corrente do ribeirão...”
Dançava e cantava assim nosso herói.
,--Pare de dançar na chuva vovô. Está trovejando!
--BUMMMMM!
--Vamos entrar Toninho!
Um ano depois, sob o quarda-sol da mesa, com um delicioso suco de melancia, assoviando Aquarela do Brasil, retira o notbook e escreve:
MINHA CASA
Quero ficar com o pé no chão.
Não quero dar voltas pela galáctica.
Não vou viajar num disco voador.
Nem desejo conhecer a Via Láctea.
Meu gênio animal está perfeitamente adaptado,
para aqui existir.
É aqui onde posso ter liberdade.
Aqui, onde tenho raízes profundamente plantadas.
Aqui, onde minhas sementes foram espalhadas.
As sementes que dão frutas:
caqui, jabuticaba, sapoti
As sementes que dão frutos:
consciência, caráter, dignidade.
.
O planeta Terra é minha única casa!
Não tenho onde ir!
Não posso partir!
Não há como sair!
Devastar deve ser motivo para a guerra.
Queimar a floresta é matar nossa vida.
Derrubar árvores é roubar nossa Terra.
Essa gente assassina,
só pode ser tratada como bandida,
deste planeta,
deve ser banida.
Não sou forasteiros.
Sou filho da Terra.
.Sou feito de água
do rio,
do céu.
do mar,
Fui esculpido com o pó da terra
Preciso do ar.
Sou da terra o sal.
Sou aquele que faz a diferença,
Sou mesmo o mineral,
Sou aquele que pensa.
Sou guerreiro.
Sou bravo.
Sou forte.
Posso enfrentar o poder,
até a morte.
Minha arma é minha língua.
A luta é minha sina.
Venha comigo,
quem a mim se afina.
Nosso canhão é a palavra.
Nossa metralhadora a internet.
Nossa bomba atômica é a atitude
Sai da frente
que eu atropelo.
Minha bandeira
é o planeta Terra.
Minha arma é o verbo.
Minha paciência já era.
Rubens Prata