São quase cinco horas da
madrugada e eu aqui, como um inveterado notívago, garimpando palavras para
descrever as sensações ocasionadas pela presença daquele enigmático visitante.
Não é muito comum, mas
vez ou outra, quando absorvido profundamente na tarefa de esculpir madeira,
pressinto a presença de alguém me assistindo, ao desviar o olhar para ver quem
está ao meu lado, nada vejo. Entretanto, fica-me a impressão indelével de que
um ser realmente me especulava. Com o passar do tempo, deduzi que seria
impossível enxergar com os olhos da matéria o que só a alma poderia apreender.
Pois é, foi numa tarde
quente na qual, durante horas empolgado com a possibilidade de uma maçaranduba,
submergido integralmente na tarefa de entalhá-la, percebi novamente uma
entidade a olhar-me. Seria um homem?
Era um homem mesmo! No
entanto, bem incomum, devia ter quase dois metros de altura, muito magro,
barba, cabelos longos a cair sobre os ombros e olhos azuis muito brilhantes. Cumprimentei-o
e ele retrucou.
-Admiro demais o
trabalho feito por você, mas não queria interrompê-lo.
Impressionado com o
magnetismo daquela personalidade cheguei a pensar, por momentos, que poderia
ser um espírito materializado testando-me
em alguma coisa. Porém, suas roupas velhas e amarrotadas, seus pés encardidos calçando
velhas havaianas, não deixavam dúvidas. Era um andante!
Compreendo o papel da
arte como algo feito para embelezar o mundo, incitar a reflexão, encantar as
pessoas. Portanto, independente do dinheiro, trato especialmente bem a todos
que deslumbrados admiram minha obra. Arte é uma apreensão da alma e não há
título, dinheiro ou diploma que faça uma pessoa ter mais sensibilidade só por
causa da fortuna ou da instrução recebida.
Imaginei que ele já
devia estar lá há algum tempo, denotando humildade e respeito. Tratei-o com
esmerada gentileza, mostrando todo meu trabalho detalhando os fatos que me
levaram a produzi-los. O visitante argumentava demonstrando bom conhecimento de
arte e dissera-me que já havia observado meu ateliê através da vitrine no dia
anterior e, meu grande dragão tinha chamado demais a sua atenção, embora minha
obra toda fosse primorosa.
Na despedida, ele tirou
do bolso uma dessas panelinhas de pressão artesanais feitas com latinhas de
refrigerantes. Confessei-lhe que não tinha dinheiro nenhum para comprá-la e
mostrei outra latinha já adquirida de um
hippie anteriormente. Fiquei estupefato, pois ele só queria presentear-me com
aquilo que só podia ser a única coisa que possuía. Ele insistiu, mas preocupado
com sua pobreza, o convenci de que ele merecia vendê-la, pois estava muito
bonitinha.
Após sua saída, fiquei a
pensar no meu vexame, no quanto a arte pode impressionar as pessoas mais sensíveis.
Lembrei-me da velha senhora paupérrima que vinha especular no meu ateliê toda
semana e, ao sair, sempre abria sua sacola e despejava um montão de balas e
frutas na minha mesa de trabalho. Houve também pessoas um pouco mais abastada
que nada compraram, mas deram-me bom dinheiro pelo encanto que as obras lhes
proporcionaram.
Continuo bem pobre como
a maioria dos artistas desta nação, mas compreendo que a arte exerce um papel
fundamental para o planeta - de despertar para a reflexão, do bom, do belo e do
bem.
Rubens Prata