19 de setembro de 2010

A MULHER DO GATO

Em “Sampa” acontecia o Revelando São Paulo no Parque da Água Branca, uma festa onde os melhores e mais variados grupos musicais regionais se apresentam. Você podia comer inusitados pratos paulistas, inclusive alimentos antigos usados pelos bandeirantes. Lá se expõe também as peças originais dos maiores artesões do estado.

Embora não seja muito divulgado trata-se do maior espetáculo artístico do estado. A grandiosidade é tal que imagino ser pário duro para o próprio carnaval carioca.

Pois bem, nesta festa cujos adjetivos não são suficientes para classificar sua grandiosidade, estava eu, de mala e cuia acampado com minha pesada tralha de arte esculpida. Foi lá que uma jovem senhora se encantou pelo meu gato elaborado em cedro rosa. Paparicou a peça, elogiou-me e disse em seguida:

- É o Jonathan com certeza, escarrado e cuspido!

Na verdade, não poderia ser a cara de gato nenhum, pois era obra moderna de formas estilizadas. Depois de contar-me a história do dito cujo, desde bebê, da mamadeira que usava, da caixinha com areia, do jeito no qual o bicho dormia com ela, da comida balanceada, do câncer que adquirira na velhice despediu-se, tecendo novos elogios a meu respeito prometendo retorno.

E assim, não passava um dia sem sua visita elogiando-me e pedindo para não vender o gato . Um dia reclamava dos R$ 1400,00 gastos com a químio do amado felino. Dizia que meu gatinho era caro para quem estava tão debilitada de dinheiro. Noutro dia, reclamava porque gastará R$ 400,00 com remédios e pedia desconto. Novo dia, mais gasto com o bichano, ora era novo remédio, ora ambulância, ora alimento, ora banho. A dona pensava seriamente num analista para o bichinho, mas embora já tivesse dado desconto ela queria mais.

Assim transcorreram os sete dias da festa, com visitas freqüentes da infeliz, choramingando pelo sofrimento do Sr. Jonathan, elogios ao “grande artista” e pedidos de descontos até o último dia quando a coitadinha que gastara dezenas de salários mínimos com o precioso levou meu gato de madeira de R$ 180,00 por R$ 60,00.

Pois é, depois de passar sete dias sem defecar porque banheiro químico nem morto uso. Depois de tomar só 3 banhos na semana, pois concorrer com outros 100 artesões um só chuveiro era duro “pra cachorro”, depois de passar uma semana sem dormir em meio a uma multidão de camas, depois de,todos os dias, ter saído às cinco da manhã e ficado na feira até 22 horas. Não podia levar todas as obras de volta sem deixar a família e as contas pra lá.

Afinal, nem todo mundo pode ser um Jonathan na vida.

A feira acabou e, consciente de que o ocorrido representava bem a nossa nova sociedade contemporânea (indiferente, fútil e hipócrita), a promessa de um descanso breve me deu forças para cantar na viagem de volta a canção do Eduardo Dusek : “Troque seu cachorro por uma criança pobre...”

JABÁ

Foi numa noite de outono do ano passado quando minha esposa manifestou o desejo de comer carne seca. Fiquei contente e havia motivos para isso, pois há anos não pedia qualquer coisa especial, algo para si mesma. Portanto, essa era a oportunidade de agradar essa mulher que tanto amo, companheira no trabalho e ainda cuida com carinho de todo mundo sem nada exigir.

Está certo, o pedido era muito simples, coisa que qualquer um poderia cumprir, mas era a única ocasião de servir alguém tão bondosa, cujo bom senso nunca permitia dar o passo maior que a perna. Daí o motivo de um desejo tão simplório.

Pus-me na rua, em busca da carninha saborosa, ansioso por satisfazer a amada que tanto merecia. Durante o caminho lembrava-me daquelas carnes secas penduradas em ferros por ganchos, junto com salaminhos e outras carnes nos açougues, das carnes secas que vinham em pacotinhos de plástico transparente e sem rótulos que há tempos não comprava.

No supermercado mais próximo aquela exposição – bem elaborada – de frios e queijos com todo tipo de carnes salames e carnes saturadas, estrangeiras com todo tipo de rótulo faziam uma festa para os olhos e uma mina de saliva na boca. Mas, cadê a carne seca?

Estava escurecendo, corri apressado a uns dos últimos açougues ainda resistindo à modernidade e nada achei.

A semana correra depressa comigo garimpando carne seca em supermercados diversos. Essa empreita já se tornara uma questão de honra. Três semanas após quando decidi que traria a tal carne nem que fosse ao nordeste buscá-la comentei com uma funcionária do supermercado mais perto de casa que não achava mais carne seca em lugar nenhum, justo um produto tão comum na nação brasileira não deveria ter sumido assim. Ela respondeu-me:

- Olha aqui a carne seca, é da Mondeli uma boa marca.

Peguei o pacote todo desenhado com carnes rodeadas de alface e li devagar:

- JER-KE-ED - BE-EF. Nossa! Jerkeed Beef é o nome do jabá agora, justo esse produto tão nacional, herança dos navegadores portugueses e talvez até de índios.
Cansado mas satisfeito, resolvi incrementar o pedido com couve, laranja, feijão preto, farinha de mandioca, paio e um pouco de toucinho bem vermelhinho – que hoje chamam de bacon.

Sai pensando nos absurdos de hoje, os quais não posso entender como: fast food, delivery, place, dowloads, self-service, ...

7 de setembro de 2010

Não me arrependo jamais,
Amei muito, profundamente,
Incondicionalmente,
Amei demais
Minhas irmãs, esposa, filhos, netos,
Os filhos dos outros,
Os amigos.
Não me arrependo de nada do que fiz,
Mesmo das horas nas quais errei.
Só me arrependo das coisas que não fiz:
Dos sonhos que não vivi
Dos abraços apertados que não dei
Do beijo que não roubei,
Da música que não dancei,
Da desculpa que pedi,
E daquela que não pedi,
Da palavra que não falei,
Da risada que contive,
Da lágrima que aprisionei.

Por que ter nostalgia de uma geração
cujo medo, covardia, machismo, comodismo, tabus
foram dominantes e nem sequer admitíamos?

NOTA: Acho que já usei algumas frases repetidas que está em outro verso, mas enfim, era o que estava pensando ontem a respeito das pessoas um pouco mais velhas como eu por exemplo

A VELHA SENHORA

Tenho na Praça Padre Tavares um quiosque, onde exponho minha arte. Visitam-me no local muita gente de fora que encantadas, tiram fotos, filmam fazendo-me acreditar que o box tornara-se um novo ponto turístico da cidade. De vez em nunca, vendo uma peça.

Passam por lá boas pessoas que gosto e também gente má que não desgosto. Há umas especiais e outras essenciais.

Entre elas, há a velha senhora paupérrima mãe de dezoito filhos, é analfabeta, mas nunca pediu qualquer coisa. Ela não lembra, mas a conheço do tempo quando passava em casa e perguntava se tinha um terreno para carpir ou um jardim para cuidar.

Pois é, exatamente ela que apanhou do marido por anos a fio, que pariu em quase todo cio, que agora feliz e viúva visita-me uma vez por mês para apreciar minhas obras e apesar da pouca instrução que a existência não lhe permitiu, ainda é ela cuja sensibilidade artística ultrapassa de longe a de qualquer letrado prá lá de instruído a afirmar ter encontrado alguém como eu com o Dom de Deus, com mãos de anjo e coração de santo.

Passa horas admirando tudo, comenta sobre as peças e me segreda que sempre vê – com a vidência própria de quem guarda relações íntimas com a natureza – minhas personagens vagando por aí, pelo mundo astral ao nosso redor.

Sempre cogita de comprar um pilão mostrando um violeiro na parte exterior. Propõe me pagar a prestação, mas sempre consigo dissuadi-la da idéia, porque apesar de seu amor a arte, imagino as privações que passaria para possuir tal obra.

Sempre antes de se despedir, derrama sobre minha mesa de trabalho, uma sacola com balas, frutas e legumes repartindo-a criteriosamente comigo – meio a meio – o conteúdo de sua pobre sacola.

As pessoas ficam abismadas, sem entender o que leva uma pessoa tão pobre a agir assim. Mas eu, bem lá no fundo da alma, percebo o motivo deste gesto e acato com prazer e respeito.